quarta-feira, 17 de agosto de 2005

Carta Aberta a Cabral Ferreira

2005/04/18

Caríssimo Eng.º Armando Cabral Ferreira,

Dirijo-me a si como futuro presidente do Belenenses, cargo para o qual, também com os meus votos, foi eleito por larga maioria. Queira ou não, você tem agora sobre os ombros o privilégio e o peso de ser o responsável nº1 deste clube enorme que é (ou, pelo menos, que foi) o Belenenses e de ser o alvo imediato das nossas esperanças - é certo – mas, também, das nossas desilusões e desgostos, como seguramente bem sabe.

Você é um homem que se apresenta com uma sólida e até invulgar cultura democrática. Sabe ouvir. Não desvaloriza as opiniões, as perspectivas, as contribuições, o trabalho dos que, sendo simplesmente sócios, querem o bem do Belenenses. Não o vi nunca colocar-se numa postura majestática, votando ao desprezo e ao desdém os que teimam em expressar o que lhes vai na cabeça e no coração. Mais até, e disso sou testemunha: ainda quando se lhe colocam reparos, críticas ou objecções, sabe escutar, não vê nisso uma ameaça e uma ofensa, dá-se ao trabalho de argumentar e (penso eu, pelo menos) é capaz até de alterar a sua opinião ou a sua postura. O que mão é sinal de fraqueza mas, sim, de inteligência.

São estas qualidades raras no nosso mundo e, por isso, me permito dirigir-lhe estas palavras – que revestem sonhos, receios, ideias, sugestões, palpitações (e também receios e angústias) de uma alma belenense.

Primeiro que tudo, caro amigo, meta urgentemente mãos à mais prioritária de todas as tarefas: revigorar a mística azul. Não deixe, nem mais um dia, que o Belenenses definhe em vida, em entusiasmo e em paixão. Devolva o clube ao povo e o povo ao clube. Um grande clube é um clube que arrasta muita gente. Inflame, ou permita que alguém por si inflame, o sentimento adormecido nas dezenas de milhares – talvez quase duas centenas de milhar – de belenenses espalhados pelo mundo. Busque, se necessário for, como quem faz a demanda do Santo Graal, as pessoas e os métodos que sejam capazes de trazer de volta, à nossa Casa, a esperança, a alegria, o calor dos incentivos. Haja quem escreva bem, com razão e paixão, e a quem doa a alma de ver o Restelo vazio, e dirijam-se missivas pungentes aos sócios e ex-sócios; inculque-se que é um dever estar presente e apoiar, e que é uma vergonha não estar presente e não apoiar; coloquem-se e distribuam-se cartazes, prospectos e apelos à comparência na grande Lisboa, sobretudo nas ruas e estabelecimentos de Belém, da Ajuda, de Alcântara, de Algés, de Carnaxide e de Linda-a-Velha, de Miraflores e de Paço d’Arcos, da Trafaria e da Costa da Caparica, aí onde pulsam mais corações belenenses; incentive-se, primeiro com convites, os praticantes do clube - 7.000 é muita gente! - a assistir aos jogos e a encher o Estádio e o Pavilhão. Dê-se orgulho – orgulho, antes mesmo de resultados! – aos belenenses, e aposte-se numa cultura de massas, num clube “consagrado e popular”, para que a alegria, e a vida, e a paixão voltem ao Belenenses “como foi antigamente”.

Renove as pessoas que servem o Belenenses, nos sectores onde é preciso injectar um novo vigor, onde é preciso gente com sangue na guelra, imaginação e ousadia. Sim, chame pessoas de mentalidade jovem e atrevida, conquistadora, inconformada, qualquer que seja a sua idade. Mas, por favor, não se confunda e não chame esses jovens obtusos e que já nasceram velhos, que não sonham com ver o Restelo a palpitar de entusiasmo, de sons e cores e cânticos e clamores; não chame essa gente acéfala e sem alma, que, por isso mesmo, não vê nem entende a alma do Belém; não chame gente que tem do clube a imagem que jornalistas, que só tem nos olhos Benfica, Sporting e Porto, impingem do Belenenses. Não chame esses produtos híbridos que são do Belenenses e, ao mesmo tempo, estranha contradição!, do Benfica ou do Sporting – queremos beléns puros, que sejam só beléns, que só queiram ver o Belenenses a ganhar a todos. Não chame essa gente que pensa que o Belenenses começou há meia dúzia de anos. Não somos coitadinhos! Não somos pequeninos! Não queremos ser pequeninos nem coitadinhos! Temos sangue azul, temos uma história gloriosa e enorme, temos lenda, temos mito, temos peso, temos razões para sermos orgulhosos e altivos a regatear o lugar em que o Belenenses deve ser colocado – um lugar que só pode ser alto. Rodeie-se de pessoas que tenham esse orgulho, esse empertigamento, essa ousadia. Tenha-os você mesmo.

Tenha-os você mesmo, sim, porque é isso que espero, que esperamos de si! Nunca ponha a fasquia das nossas ambições em alturas medíocres. Nem sofríveis. Nem assim-assim. Nem sequer boazinhas. O que parece também é, neste mundo de espelhos e imagens. Se sonharmos com grandeza, já somos grandes, já começamos a ser grandes. Se pensarmos com grandeza, já somos grandes, já começamos a ser grandes. Se falarmos com grandeza, já somos grandes, já passamos a imagem de grandeza, já atraímos respeito, já atraímos gente que quer grandeza e deteste a pequenez. A grandeza atrai grandeza, sucesso atrai sucesso, gente atrai mais gente. É preciso inverter o ciclo das última décadas, em que pequenez (de horizontes) trouxe mais definhamento, em que insucessos trouxeram conformismo, em que cinzentismo trouxe um estado de torpor da nossa alma, em que a falta de interesse em atrair povo trouxe o vazio das bancadas, a terrível desertificação a que assistimos e que, pelos vistos, a alguns, não mete dó.

Fale sempre, nunca perca uma ocasião, da grandeza do Belenenses. Sim, não perca nunca a oportunidade de afirmar o nosso orgulho, e a nossa garra e ambição renovadas. Esqueça-se de si e de coisas pequeninas que passam e lembre-se dos grandes que fizeram o Belenenses grande com sangue, suor e lágrimas. Você haverá de ser digno deles. Nunca diga, não se permita nunca o lapso de dizer, ainda que por infelicidade de expressão, que um 7º ou 9º lugar é uma boa classificação. Não é. Não pode ser. Não podemos deixar que ninguém pense que é. Não podemos deixar que ninguém pense que estamos satisfeitos ou conformados com esse lugar! Diga, caso lhe lembrem que ficámos em 15º, ou 12º, ou 9º, que foi um período mau e transitório que passou, uma excepção, uma tropeção que ficou para trás. Lembre sempre, nunca desperdice ocasião de lembrar, que só no futebol, fomos 4 vezes o melhor de Portugal – com 1 Campeonato Nacional e 3 de Portugal; lembre sempre que a nossa classificação mais vezes obtida (de longe) foi o 3º lugar; lembre sempre (e, antes de tudo assuma) que o nosso lugar deve ser sempre entre os 4/5 primeiros – entre os 4/5 primeiros e não necessariamente em 4º ou 5º - e que tudo o que for abaixo disso não é bom: é triste, é decepcionante. Não diga que queremos ir às competições europeias (um chavão inventado pelos jornalistas para lá enfiarem os clubes considerados de 2ª linha e distingui-los da casta dos três deles, para quem ficaria exclusivamente a discussão do título) mas diga que queremos os lugares cimeiros que, inevitavelmente, implicam o acesso a competições europeias – é diferente, muito diferente! E, já agora, lembre sempre que temos dezenas e dezenas de títulos nacionais em Andebol, em Basquetebol, em Râguebi, em Atletismo, em Ténis...

Não nos deixe passar mais vergonhas. Derrotados talvez – mas de cabeça erguida. Altivos. De pé. Altaneiros, com o peito feito à Belém. Estamos já entalados entre “lagartos” e “lampiões”, alguns também massacrados por “Andrades”, que (os três) continuamente nos xingam com a pergunta “quando é que vocês ganham alguma coisa?”; ao menos, livre-nos do paternalismo: “somos amiguinhos, anh? Emprestámo-vos o X e o Y”. Acabe com essa pouca-vergonha, com essa ferida aberta na alma do Belenenses, que faz sangrar a alma dos que sabem o que é o Belenenses. Não peço que inicie uma guerra com esses clubes, nem gostaria que o fizesse. Mas que sigamos orgulhosamente o nosso caminho de afirmação própria, sem a mais leve subserviência explícita ou implícita (e ter emprestados desses clubes, é uma subserviência implícita).

Lide com firmeza e savoir-faire com a Comunicação Social. Exija que falem do Belenenses, com detenimento, consideração e respeito. Criemos factos todos os dias, se necessário for! Haja quem saiba e esteja atento para corrigir todas as imprecisões e manifestações de ignorância e para não deixar passar nem uma ofensa, não a esta ou àquela pessoa, mas ao clube. E elas existem todos os dias. Existem, por exemplo, quando nos consideram duma casta diferente daqueles a que chamam grandes; existem, por exemplo, quando se atrevem a omitir Artur José Pereira e Pepe, Amaro e Augusto Silva, Vicente e as Torres de Belém na galeria dos mitos, dos monstros sagrados do futebol e do desporto português; existem, por exemplo, quando escamoteiam os títulos que conquistámos; existem, por exemplo, quando nos trocam os nomes de jogadores, quando falam das exibições de jogadores que nem foram convocados, quando a comentar um jogo nosso com o Gil Vicente, falam do Benfica e do Sporting. Existem, por exemplo - e tantos e tantos dias! -, quando nos “despacham” com 10 linhas a uma coluna, num jornal de 60 páginas. É preciso revoltarmo-nos, com nível. É preciso ter pertinácia, é preciso estar em cima. E só o poderá fazer quem não se conformar, quem não for um pavão que acaba por “dormir” com o inimigo, ficando a falar com os jornalistas sobre a nova contratação do Benfica, o novo treinador do F.C. Porto, o puto bestial que se está a revelar no Sporting. Só o poderá fazer quem tiver uma correcta imagem - de orgulho, grandeza e auto-estima - do Belenenses. Se não tiver, não é nada, é um relações públicas de meia tigela, amorfo e passivo. E isso mata o Belenenses. Prefiro os adversários declarados. Esses, ao menos motivam-nos para a luta!

Auto-estima, disse eu. Exacto, auto-estima! Temos de a recuperar. Mas não a recuperaremos com gente que, nos lugares onde pode ser influente, se imbuiu já da sina do Belenenses simpático-coitadinho. Com gente cuja ideia de grandeza e ousadia se esgota em palavras que julga sonantes e modernas (sem reparar que já têm barbas), tipo merchadising e coisas do género. Merchandising? Para quê, se não houver quem tenha o entusiasmo de comprar?

Não deixe que um treinador possa estar convencido de que estamos satisfeitos se o Belenenses não descer de divisão. Não deixe que um treinador esteja convencido que um 8º lugar é fantástico. Certifique-se que ele não tem essa triste convicção. Mas certifique-se mesmo, com prova dos nove e prova real. Se houver dúvidas, mande-o embora. Tem custos? Pois tem. Mas pior custo é deixar o clube banalizar-se. Já falta pouco para isso acontecer. Não deixe que definhemos mais. Vá buscar gente que não tenha limites para a ambição - mas ambição no Belenenses e não, um dia, noutro clube. E trate de arranjar quem limpe a cabeça, de quem quer que nos represente, da triste ideia de que não somos um grande clube. Quem tiver essa ideia não pode estar no Belenenses, nunca! Não serve! É uma maçã podre, um foco infeccioso, uma célula cancerígena! Queremos gente que, se estiver em 2º, queira chegar ao 1º, e não gente que, se estiver em 5º, ache que o 6º também não é mau.

Introduza em força a Psicologia no clube, em todas as suas vertentes. Faço-o, desde logo, e por exemplo, para perceber se os atletas a contratar são pessoas de qualidade humana; mas também, para os acompanhar, para lhes incutir confiança e sanar desânimos, para impedir fraquezas e acomodamentos; além disso, para imbuir atletas, treinadores e adeptos – sim, adeptos! – de uma mística à Belém. Atenção: só pode fazer isto, quem tiver essa alma pujante, bela e heróica que foi a nossa. Já somos tão poucos...

Rodeie-se de pessoas competentes – mas de pessoas que queiram e saibam ser competentes no Belenenses. Para isso, precisam de perceber a identidade do clube, coisa diferente de uma empresa – se tratarem o clube como uma empresa, continuarão a retirar-lhe a vida. Não queremos gente para quem seja igual que, no nosso estádio, estejam 5.000 pessoas a 20 Euros ou 20.000 a 5 Euros, só porque a receita é a mesma. A quem desempenhe funções no clube, é preciso exigir uma ambição e uma determinação sem limites. É preciso que a todos se incentive a darem o máximo, mas mesmo o máximo, a trabalharem nos limites, sem o “espírito” de qualquer coisita serve; é preciso serem apertados se não procederem assim. Pague-se onde for necessário; mas exija-se o máximo, sem concessões. Não mais sirva a desculpa “ah, mas eu gosto muito do Belenenses, só que não tenho tempo nem cabeça, a minha empresa exige tanto...”.

Defenda o ecletismo do clube, porque nos sabe bem ver como, ano após ano, tantas modalidades enchem de títulos o Belenenses. Mas atenção: não deixe o Belenenses transformar-se num Ginásio Clube Português ou num Sport Algés e Dafundo (salvo o devido, e muito, respeito). Seja sagaz ao escolher as modalidades e, sobretudo, as grandes apostas. Estas não podem depender do capricho de meia dúzia de pessoas ou do jogo do empurra-empurra. É preciso escolher o que traga mais prestígio. O Belenenses precisa de um grande feito nessas modalidades, para estas o ajudarem a devolver-se à sua grandeza. Por muito importante que seja, não basta já um título nacional no Râguebi, mesmo no Basquetebol ou no Andebol. Precisamos de uma Taça Europeia – não se esqueça do Hóquei em Patins ou, então, desnivele positivamente a aposta numa modalidade, talvez o Andebol, onde também possamos chegar lá. E/ou pense-se em força numa medalha olímpica. Agora que, pelos vistos, há estabilidade financeira, não podemos voltar a deixar sair um Francis Obikwelu ou uma Naide Gomes. Não podemos! Não bastam contas certinhas!

Sim, não bastam contas certinhas! É preciso um golpe de asa! O Belenenses precisa de um grande feito no futebol. Um Campeonato, novamente, é preciso como pão para a boca. Outros clubes, com bem menos pergaminhos que o nosso, mostram que não é utópico. Uma Taça de Portugal seria bem vinda. Competições europeias? Sim mas não é para ficar na 1ª eliminatória, é para ter ambição e ir por aí fora, sem pensar “que chatice, as despesas que isto dá”. E, já agora, sem transmissão na televisão, com uma grande mobilização para termos uma excelente assistência, com preços que tenham em conta que não estamos propriamente com o nível de vida dos nórdicos...

Faça no estádio algo que se veja em toda a grande Lisboa, por exemplo, um fulgor de luz azul que se veja à noite a quilómetros. Não é um desperdício, não é um luxo. É a afirmação da nossa vontade de resistir, de gritar “aqui estamos”, de voltar a conquistar o nosso espaço vital face ao “abraço” asfixiante de Benfica e Sporting. Pense nisso. Não é uma idiotice qualquer.

Espero que continue a preferir sócios com ideias, mesmo que isso implique exigência e capacidade crítica, e que nunca ceda à tentação de se encostar aos amorfos, aos acéfalos, aos cinzentos, aos coitadinhos, aos “adeptos do Cascalheira”, como diz um nosso amigo comum.

Desejo-lhe o maior sucesso, porque o seu sucesso será o nosso sucesso. Mas não se conforme com um sucessozinho qualquer: seja exigente.

Aquele que nunca descansa, aquele cujo pensamento almeja, de corpo e alma, o impossível, esse é o vencedor!” (Beethoven)

Um abraço azul!