terça-feira, 4 de outubro de 2005

Um Clube a .... (parte II)

Ao contrário do que alguns (compreensivelmente) desejam fazer, eu não quero esquecer o que vi na Sexta à noite.

Para que percebam definitivamente, volto a repetir-me: já perdi e continuarei sempre disposto a perder em casa contra quem quer que seja. Não é esse o meu problema. O meu problema é ver uma equipa (salvo seja) de cruz ao peito fazer o que aquela fez naquela noite. O meu problema é, a partir daquilo que a vi fazer, perceber o que ela não faz durante as semanas que antecedem os jogos.

Existe um alvo directo da minha frustração como adepto. Chama-se Carvalhal, obviamente. Mas, sobre Carvalhal, não quero dizer mais. Vê quem quer. Já cá está há meses, já fez dezenas de jogos. Quem quiser formar uma opinião, que forme, quem quiser gostar, que goste. Está publicada por Pedro Patrão neste blog uma fria análise numérica. São números, não são opiniões.

Mas, o meu problema está para além de Carvalhal. O meu problema são os factos repetidos nos últimos anos, ou, se quiserem, os meus problemas são estes:

Porque é que Carvalhal falhou?
Porque é que Inácio falhou?
Porque é que Bogicevic falhou?
Manuel José?
Marinho Peres? (neste caso com excepção dos primeiros tempos após o seu regresso)

E, já agora, pondo as coisas noutro plano:

Porque é que Silas não singra?
Zé Pedro não singra?
Petrolina?
Neca?
Guga?
Eliel?
e todos os outros.

Porque é que todos estes jogaram sempre muito mais no primeiro jogo que fizeram no Restelo do que no décimo?
E mais no décimo do que no vigésimo?
E mais no vigésimo do que no último?

Ou seja, porque é que o Clube há anos que não tem jogadores e equipas que cresçam, tendo, em vez disso, equipas e jogadores que decrescem a cada jogo?

Poderão haver exercícios destinados a demonstrar que isto não é verdade, que há excepções, que houve fases “assim, assim”, etc., etc. Os complicômetros de análise são gratuitos e ligam-se com muita facilidade para nos desviarem do essencial.

Mas, não tenham dúvidas. Esta realidade é demasiado factual para poder ser escamoteada, bastando olhar com atenção para o próprio vocabulário das nossas lideranças recentes: “fase da asneira”, “ano zero” e quejandos são coisas que lhes saíram da boca e que mostram o que lhes vai no subconsciente.

Por isso, é preciso assumir que, mais do que qualquer Carvalhal, é o clube que padece de uma incapacidade de se fortalecer futebolisticamente, uma incapacidade de construir equipas de futebol que crescem e que o engrandeçam.

É isto que me interessa tentar perceber porquê.

Ao fazê-lo, deparamos com um facto paradoxal: o Clube está financeiramente estável, é cumpridor e oferece condições de estabilidade emocional aos jogadores muito acima da média (talvez mesmo únicas no nosso futebol). Ou seja, nada do que habitualmente incendeia balneários, destrói a concentração dos jogadores ou dinamita lideranças, se verifica no clube.

Este paradoxo tem a virtude de nos levar imediatamente para o cerne do problema, o qual só pode ser um: o problema está nas estruturas dirigentes do clube que mandam no futebol.

Quando me refiro a “estruturas”, refiro-me a tudo o que subsiste para além do treinador, o qual é sempre um personagem efémero (excepto em certos clubes, em certas ocasiões, normalmente com bons resultados): presidente, direcção, secretários técnicos, acessores, adjuntos da casa, adjuntos sem ser da casa, clínicos, etc. Não tenho qualquer razão para excluir quem quer que seja (assumo a inerente possibilidade de injustiças).

As recentes estruturas dirigentes do clube triunfaram na (difícil) tarefa de o estabilizar financeiramente. Temos que louvar o facto de terem sido muito competentes nessa matéria. Não o ignoro e enalteço-o.
Porém, as que lhes sucederam falharam (e continuam a falhar) na tarefa que se impunha a seguir, aliás, sem o sucesso da qual, pelo menos para mim, a primeira não faz sequer sentido (apesar de admitir que para outros faça), que é a de tirar partido dessa estabilização para lançar (recuperar) futebolisticamente o clube.

O falhanço é óbvio e continuará a manifestar-se. Mais Estrelas virão. Com uma equipa a mostrar em campo aquilo que mostrou na Sexta feira é difícil que assim não seja.

Não é num post que conseguirei alinhar as variadíssimas razões dessa falta de aptidão. Procurarei explicar o essencial daquilo que, à distância da bancada onde me sento, dos jornais que leio, daquilo que, de fora, vejo e oiço há anos, consigo perceber.

O nosso orçamento “real” rondará, segundo contas feitas por Pedro Patrão neste blog, cerca de 6 a 7 milhões de Euros.
Não é um orçamento de topo no nosso futebol, mas também não é um orçamento miserável. Bem pelo contrário.

Arriscarei dizer que o Boavista terá sido campeão nacional num cenário bem próximo do nosso. Arriscarei dizer também que o Braga, aquela equipa altamente competitiva que naturalmente invejo, não gastará muito mais do que nós.

Ou seja, para justificar a mediocridade e a falta de jeito com que é gerido o nosso futebol, nem sequer uma lógica puramente “orçamenteira” surge como justificação.

O problema começa, portanto, na evidente falta de garra, falta de ambição, medo, tremor, complexos, traumas, falta de jeito, falta de vocação, falta de vontade e sentimento de “frete” com que é gerido o futebol do Clube.
O insucesso tem desculpa. O medo não.
Eu sou um adepto que muitos considerarão "crítico" (para alguns, devo mesmo ser um herege ou muito pior do isso. Como já devem ter reparado, pouco me importo). Mas, nem eu, nem aqueles que pensam como eu, fazem mal a quem quer que seja.
Porquê, então, o medo? Não sei. Para isso não tenho resposta.

Dir-se-á que as nossas estruturas futebolísticas são dotadas de uma espécie de capacidade de se “auto-miserabilizarem” talvez única no desporto Europeu.

Só isso explica todas as “auto-mutilações” de ambição com que arrancamos para o que quer que seja. A estúpida definição do “ano zero”, com a ambição de chegar ao 10º ou a taça como "competição paralela" , são disso bons exemplos. Permito-me apenas contrapor um facto elucidativo – O Rio Ave, com um orçamento bem mais baixo que o nosso, permanentemente no fio da navalha financeira, sem craques, permitiu-se jogar bom futebol todo o ano. Apenas com o dedicado e ambicioso trabalho diário dos seus jogadores, dirigentes e treinadores, permitiu-se dispensar teorias palermas do “ano zero” e superar-se .

Um ideal DIÁRIO de superação. Em cada treino, em cada jogo, em cada reunião de direcção, em cada conferência de imprensa, eis a coisa simples que nos falta. "Tarefas Hercúleas", já ouvi dizer. Pois....

Mesmo nesta época, com a propalada “mudança de discurso” (tanga que já digeri e regurgitei) aconteceu a coisa fabulosa de termos a Europa como ambição, ou seja, o 5º ou 4º, mas já não, expressamente, a Champions, ou seja, o 3º a 1º. Isto é, por um qualquer facto que me ultrapassa, a subida de dois lugares na classificação é tarefa hercúlea que nos está vedada.

O que é um facto extraordinário por ser produzido num clube cuja génese foi sempre a da superação. Foi assim que nasceu, foi assim que singrou, foi assim que se afirmou e por isso não morreu à nascença. Agora, pelo menos no que ao futebol de onze diz respeito, é o contrário de tudo isso.

Pior do que isso: as esferas dirigentes (ou quem lhes anda próximo) agem sempre no pressuposto de ser um dever refrear ânimos. Os apelos ao "bom senso" e à "calma" abundam. Ao contrário do que se entende no mundo do futebol afora, os adeptos do Belém actual são convidados a não ser exigentes. São convidados a desculpar tudo o que lhe fazem e a acreditar sempre, sempre, sempre muito contentinhos e cheios de bom senso e boa vontade nas fulgurantes xuxas que lhes vendem.

Esta coisa extraordinária, que contraria o mais básico dos instintos de um clube – ser exigente, ser ambicioso, ser intolerante com a mediocridade, tentar superar-se – acontece neste clube fruto da consolidação da sua mentalidade traumatizada e derrotada.

No fundo, cientes do gigantesco frete que é ter uma equipa de futebol, do muito que suam na trôpega e inglória tarefa de o levar a cabo, as estruturas dirigentes pedem aos adeptos que ajudem a suportá-lo, deixando-se de ingratidões e apoiando ininterruptamente a equipa mesmo quando os jogadores gozam com a sua cara.

Vai-se mais longe: Criou-se uma espécie de convicção de que a culpa, afinal, é dos adeptos que assobiam e dizem mal. Esta reversão extraordinária de raciocínio é só mais um dos sintomas dos profundos traumas em que vive o Clube. Esta coisa tão idiota não tem sequer em conta que a esmagadora maioria dos que assobiam e dizem mal ganhará ao longo da sua vida de 30 anos de trabalho seguramente menos do que um jogador medianamente pago deste plantel ganhará em três anos. No entanto, aponta-se a culpa ao desgraçado que se revolta por ver o seu clube maltratado e não para aquele que o maltrata em campo, ou melhor ainda, para quem o tolera impunemente e não lhe transmite graus de exigência que o impeçam de o fazer.

Já escrevi há muito tempo que o pior dos adeptos é o que tolera a derrota vergonhosa (entendida como a derrota na forma como ocorreu na última Sexta). O pior dos clubes será aquele que tem muitos adeptos deste género. A única consolação é que não durará muito tempo assim se acabando rapidamente com a aberração.

Volto àquela Sexta à noite.
Foi facílimo perceber na cara de certos jogadores onde está o problema. Eles vivem no Restelo grande parte dos seus dias. Eles cruzam-se com as pessoas que neles mandam. Eles sabem que caras elas têm, eles pressentem o que elas ambicionam e o que elas lhes exigem.
Os valores são sempre transmitidos de cima. Os jogadores assimilam-nos.
O que fazem em campo reflecte a soma do que captaram ao longo dos dias, semanas, meses.
Por isso, invariavelmente, todos eles jogam menos no décimo jogo do que jogaram no primeiro.

Este clube, desta forma, é um cemitério de ambições.
É um cemitério de vontade de ganhar.
É uma antítese de si próprio.


Despido da ambição mínima de crescer, de se motivar, de criar uma lógica de gosto, repito, de gosto de jogar bem à bola, de gosto pela busca destemida e audaz da vitória, de gosto por ambicionar e triunfar, eternamente "auto-encurralado" entre a “fase da asneira” e o “ano zero”, dominado pelos imensos melindres que tem cabeça, este clube entrega-se facilmente a qualquer Carvalhal que lhe apareça.

Não podia haver casamento mais perfeito!
Perceber que o Belém actual é um clube que nem medianamente consegue rentabilizar a estabilidade e tranquilidade financeiras que (ainda) tem, quando, por razões de sobrevivência tinha a OBRIGAÇÃO de se tentar superar a todo o custo, é um exercício de análise aterrador.
Ver como tanta gente se conforma com isso é coisa ainda pior.

Por isso, vou-me continuar a iludir na esperança de que um tal de Belenenses exista por aí, esquecido num lugar qualquer.

Sobre este, já não me iludo!