sábado, 12 de novembro de 2005

Acácio Rosa, em discurso directo (Parte I/II)

Entrevista publicada na “A Bola” Magazine, em 16 de Setembro de 1988 (edição nº 16).

Nesta ocasião resolvemos rebuscar no baú das recordações. Ausência de jogo de futebol neste fim de semana, menos notícias para ler e ainda menos motivação para comentar. Além de acompanhar os resultados das modalidades “amadoras”, claro.

O terreno estava lançado quando o nosso amigo Paulo Jesus, há pouco tempo atrás, ao dar-nos o grande prazer de escrever para todos nós o artigo sobre o José António (no aniversário do seu nascimento), remexeu o seu arquivo pessoal. Entre muitas outras coisas que encontrou fez o grande favor de nos enviar, assim como ao Luís Lacerda, uma grande quantidade de artigos e entrevistas relacionados com o Belenenses e publicadas nesta extinta revista, ao tempo em que essa instituição não era tão parcial como agora. Ou melhor, era, mas muito mais capaz de produzir conteúdo interessante e não exclusivamente sobre os “três únicos” e qualquer trivialidade.

Ficamos pois com uma grande entrevista, que dividiremos em duas partes, a essa grande e incontornável figura do Belenenses. Seu incansável historiador, dirigente e amante. Alguém que lhe dedicou a vida como poucos o fizeram.

O que nos impressiona mais ao transcrever esta sua entrevista, além da riqueza da intervenção e papel desempenhado no desporto português, com a sua vasta experiência que nos enriqueceu a todos, embora nem todos o soubemos ou saibamos compreender e honrar, é a sua lucidez e visão do futuro. Um futuro que dificilmente lhe agradaria, especialmente porque as suas piores previsões se verificaram verdadeiras. O tempo deu-lhe e continua a dar-lhe razão em tantos dos assuntos abordados, mesmo mais de 17 anos volvidos sobre a publicação desta entrevista.

Foi essa a principal razão pela qual a fazemos reviver hoje e amanhã. Para que com calma e sem sobressaltos próprios do momento porque passamos, a possamos apreciar devidamente.



Vai um cafezinho?

A Bola Magazine: De mal com muitos homens por amor ao Belenenses? Definitivamente zangado com o desporto?

Acácio Rosa: Não. De mal com o Desporto, não, pois foi no desporto que encontrei as minhas melhores amizades, se nele vivi um ideal apaixonante, se nele tive dias e dias de plena felicidade. Como seria possível estar zangado com o desporto? Mas há uma grande mudança no desporto. Na minha juventude, o desporto representava família, hoje representa cifrões... Temos de nos adaptar ao presente por ser impossível recuar a um estilo, para mim, mais saudável e, portanto, mais agradável de viver. A lei pertence ao forte, ao economicamente poderoso. E o praticante de desporto, salvo raras excepções, até é capaz de não saber que houve amor à camisola, luta apenas por um contrato.


Acácio Rosa entrou no desporto pela via basquetebol. A doença começou no colégio, passou ao Liceu e daqui ao Belenenses. Bons tempos, Acácio Rosa?

No recreio do colégio onde entrei com 8 anos, havia um campo de basquetebol. Ao princípio, não tinha tabelas e a rapaziada chamava à modalidade que se praticava “basquetebol inglês”. Mais tarde, puseram lá tabelas e então a malta mudou o nome para pior, chamava-lhe “basquetebol de meninas”. O basquetebol que vi no colégio marcou-me bastante. Levei-o parao Liceu e aqui começa a minha carreira de jogador, árbitro e seccionista.
Comecei realmente muto cedo a minha acção didáctica, o Belenenses tinha 8anos e eu 15, parecia-me impossível como um moço de 15 anos se sentia filho de uma colectividade com 8. Ia para o Liceu, mas passava sempre pelo Júlio do Quiosque, pelo Barbinhas, pela tipografia do Vieira, a fim de beber as novidades desportivas. Nessa altura, já treinava os infantis, de onde saíram grandes nomes do basquetebol como Rómulo Trindade e Fernando Mendes. Estive, felizmente, nos dois títulos de Campeão de Portugal do meu Clube, alcançados em 1938 e 1944. E trouxemos a Lisboa a selecção brasileira e o Layetano, campeão de Espanha.
Fui mais vezes membro da direcção do Belenenses, mas confesso-lhe que a minha vontade era ser seccionista, era na ligação directa com as modalidades e os seus praticantes que me considerava mais útil. Aminha longa caminhada como director teve o arranque em 1944 quando a Direcção-Geral dos Desportos puniu a direcção do Clube, presidida pelo Dr. Constantino Fernandes. O Comandante Américo Tomás assumiu a presidência para a abandonar quando foi nomeado ministro da Marinha, o Clube sentiu a necessidade de ter uma direcção alheia à política que se vivia na época e considerou que eu era o homem indicado para a encabeçar. São histórias de um homem antigo...



Acácio Rosa tocara um ponto nevrálgico da história do desporto em Portugal: a troca de um presidente democrata por um homem da situação. Era vulgar. Mas entrámos noutra pergunta: desistiu de escrever a História do Belenenses?

A história está feita até 1984. Concretizei um sonho que tinha desde criança. Receava que todos aqueles que ajudaram ao prestígio doClube, que as nossas vitórias, os nossos títulos e também as nossas angústias fossem hoje ignorados por terem sido lançados simplesmente na vala do esquecimento. Limitei-me a registar, cronologicamente, tudo quanto pudesse mostrar a vida de um Clube ímpar aos homens de amanhã. Grande parte dos meus livros está escrita pelos jornalistas. Limitei-me a transcrevê-los. A História está cheia de factos, nomes e números verídicos. Mas já desisti de escrever. Hoje os acontecimentos parecem-me de outra cor, carecem de verdade desportiva, só se fala em contratos, vêem-se por todo o lado lutas pessoais. Julgo-me ultrapassado. Quem quiser que faça a nova história do meu Clube ou continue a minha, se ela tiver algum interesse. Veja que o Belenenses actual não comprou nem um livro da sua história...


Estamos em tempo de escrita. É verdade que tenciona lançar a História do Andebol Português?

Não sei ainda. Gostaria de o fazer, aliás o Andebol merece ter quem o conte desde que se implantou no nosso País, mas julgo que o material que possuo não é suficiente. Por outro lado, pessoas por mim contactadas também pouco ou nada têm. Parece-me impossível reunir todos os elementos de que necessito, incluindo material fotográfico.


Tem acompanhado o volume de despesas do futebol do seu Clube ou de outro qualquer? Que nos diz dos vencimentos fabulosos praticados em muitos casos?

Sei, por exemplo, que em 1982, quando era presidente do Belenenses, as despesas eram 72.000 contos. Hoje ultrapassam os 500.000, que julgo serem cobertos por receitas extra: bingo, totobola e totoloto, no valor aproximado de 310.000 contos. Mas de 1982 a 1988 o passivo aumentou cerca de 200.000 contos. Estes números afligem-me. E eu pergunto: E quando acabar o bingo? Respondendo directamente à sua pergunta, penso que os ordenados são inacreditáveis, pior, são inconcebiveis. Não temos futebol para estes gastos. Preparemo-nos todos para assistir a uma marcha atrás ou para o descalabro, cujas consequências serão imprevisíveis.


(...)

(continua amanhã)