domingo, 6 de novembro de 2005

A CRÓNICA DO JOGO

BELENENSES – 1
BOAVISTA – 1

BALDE DE ÁGUA FRIA SOBRE O QUE PODERÁ TER VOLTADO A SER UMA EQUIPA

Custa-me escrever esta crónica.

Estou triste.

Mas a minha tristeza, desta vez, e pela primeira vez nesta época, é uma tristeza suportável. Suportável porque é uma tristeza de adepto que viu a sua equipa jogar, ter o pássaro na mão e deixá-lo fugir. De uma forma cruel, muito cruel, mas suportável, porque própria da condição de adepto.

Sim, porque hoje, apesar do desaire, vi uma equipa. Não vi uma equipa deslumbrante, mas vi uma equipa.

Algumas dúvidas me assaltam e corroiem: será que a equipa que julgo ter visto hoje continuará a ser equipa nos próximos jogos? Será que aquilo que eu julgo poder ser construído a partir desta base, o será? Será que as “âncoras” do futebol passado, que ainda hoje se notaram em campo, desaparecerão em favor do novo conceito que julgo ter visto?

Enfim, não sei.

Mas, hoje decidi sair do Restelo a acreditar numa réstia de esperança.

Vou tentar explicar a tal nova concepção que julgo ter visto, em desfavor da crónica do jogo propriamente dita.

Esta é simples.
Primeira parte com domínio nosso, ainda que não avassalador.
Jogo finalmente ligado e agradável com jogadores a parecer que queriam e até estavam a gostar de jogar à bola.
Falhanço clamoroso cerca dos 30 minutos com a bola a roçar a linha de golo do Boavista por três vezes. Perda de fulgor na segunda parte e maior equilíbrio de jogo.
Finalmente o golo e superioridade numérica em campo.
Perda do meio campo.
Expulsão de Meyong.
Crescendo do Boavista.
A cinco minutos do fim, um azar de Marco Aurélio que minutos antes havia feito uma defesa do outro mundo. Tremendo balde de água fria, numa bancada que voltava a sentir o calor de ter uma equipa.
Tristeza indizível, mas “de adepto”, no final.

O principal, porém é a tal “coisa nova” que julgo ter visto.
Em termos tácticos, chamar-lhe-ei um 4-2-3-1, para não arriscar mesmo em 4-2-4!
Além dos quatro defesas, temos dois médios defensivos (Sandro e Pinheiro), seguidos de uma linha composta por Sérgio à direita, Silas à esquerda e Januário ao meio como “patrão de jogo”. Meyong a ponta de lança.
Várias coisas aconteceram de novo neste sistema e revolucionaram o anterior:

- Tivemos um patrão de jogo, ou um “construtor de jogo”, como lhe queiram chamar - Fábio Januário, que vai buscar a bola, sabe recebê-la, sabe sair da finta, andar com ela, correr com ela e passá-la. Além disso, é móvel. Por exemplo, se o passe foi para o extremo, que está recuado, e teve que flectir para o meio, Januário sabe, quer e vai assegurar a linha de passe nesse flanco. O jogo torna-se fluído, o futebol ofensivo ganha continuidade e racionalidade. Isto é só exemplo.

- Tivemos extremos, isto é, indivíduos que não tiveram dúvidas quanto à sua função em campo, mas com a serenidade suficiente para serem móveis, podendo explorar o centro do terreno também . E tivemo-los em ambos os flancos, abrindo assim o jogo, dando-lhe outra dinâmica, dando-lhe outras soluções, outro conteúdo. Foi assim deitado às urtigas o princípio Carvalhista do “extremo único”, segundo o qual, havendo um num flanco, jamais nos poderíamos dar ao luxo de ter um no outro.

- Existiu colaboração entre as linhas, que, finalmente, puderam jogar umas com as outras. Talvez tenha sido esse um dos grandes méritos do sistema utilizado. O meio campo ofensivo passou a poder conservar a bola pelo tempo e pela forma suficientes para pensar o jogo e o fazer.

- Ainda houve alguma tendência para o passe longo “para ponta de lança reter de costas para a baliza”, mas, até nisso, a qualidade do passe e da recepção melhorou.

- Conseguimos muitos mais saídas da finta com bola do que o costume. O “costume” também andaria pelo “zero por jogo”, mas, enfim, há melhoria.

- Januário foi um factor importantíssimo que não me canso de enaltecer. Quer em termos de disponibilidade e entrega, quer em termos técnicos e tácticos, esteve excelente. Foi o melhor em campo. De segunda opção para eventual extremo, esquerdo ou direito conforme as necessidades dos últimos dez minutos a perder, passou a “patrão de jogo”. E acho que ganhámos um. Tem bom toque de bola, tomas decisões rapidamente e quase sempre bem, não se importa e até gosta de ter a bola em espaços curtos e, pressionado, sabe manter a bola e sair da finta. Sabe progredir bem com ela. Demonstrou razoável capacidade de passe.

Muito mais haveria a dizer, mas julgo que foi nisto que esteve a “revolução” que julgo ter visto.

Atenção, ainda, a um pormenor importante: o Boavista deste treinador é um Boavista "aberto". Caceteiro, mas aberto. Em jogos contra equipas efectivamente fechadas, muito terá de ser trabalhado neste sistema.

Mas, ainda há restos do “anterior regime”.

- Continuamos carentes de uma defesa que efectivamente apoie o meio campo e o ataque em posição ofensiva.

- Grassa ainda a falta de confiança na circulação de bola entre defesas, a não visualização de linhas de passe que, finalmente, parece que passaram a existir no meio campo e, para Pele continua a vigorar a solução confortável do pontapé para a frente.

- Temos, ainda, o “caso Faísca”. A resolver mal se possa!

- Sousa está nas lonas fisicamente. Porém, na minha opinião, tem uma vantagem sobre Amaral – não nos mastiga o jogo naquele flanco como Amaral o fazia, com aquela sua cerimoniosa pose de “construtor de jogo pelo seu flanco de olhos no chão e a dez à hora”, evitando que a manobra ofensiva se resuma a passes de defesa para o seu extremo a roçar a linha lateral, em conquistas de terreno de cinco em cinco metro, estilo “rugby”.

- Pinheiro continua de costas para a bola e com medo dela. Não se intrega na manobra ofensiva. Sendo o mais liberto dos médios defensivos cabia-lhe criar linhas de passe de ajuda aos homens que lhe estão à frente e aparecer, lendo bem o jogo, a criar desequilíbrios vindo de trás. Não soube fazer isso. Duvido que saiba. Um que soubesse, dava-nos um jeito do caraças!

- Estamos fisicamente de rastos, prova empírica do “magnífico” trabalho que temos andado a fazer. Sousa completamente roto. Silas e Januário em quebra acentuada na segunda parte (única razão, aliás, justificativa das respectivas substituições. Espero!)

É preciso perceber, também, além da física, as razões que levaram à perda progressiva do meio campo naquela segunda parte. Confesso que não tenho explicação. Quem a tiver, que avance, pois não faço ideia. Agora, que aconteceu, aconteceu e é imperioso saber porquê e corrigir.

Enfim, hoje, a minha tristeza indizível está, pelo menos, consolada por uma ilusão. A de que vi uma luz ao fundo do túnel. Espero não ser ilusão.

Não dou pontuações. Mas, hoje, apetece-me fazer algumas referências:

Marco Aurélio: Só os melhores fazem aquela defesa espectacular cinco minutos antes do golo deles. Já qualquer um pode ter o azar que tiveste. “No hard feelings”, Grande Imperador!

Meyong: Sou obrigado a lembrar que um profissional não pode fazer aquilo. Custou-nos bem e vai-nos custar mais nos próximos dois jogos. Vi o lance de muito perto e compreendo. Mas, não posso desculpar.

Silas: Sabe jogar. Mas pode e tem que fazer muito mais.

Fábio Januário: O melhor em campo. Grande exibição. Mereceu inteiramente a ovação de pé que recebeu e que já há muito não era feita no Restelo a um jogador. É fundamental que se assuma naquela condição de “construtor de jogo”. Tem essa possibilidade à sua frente. Espero!

Couceiro: Sou o mais insuspeito para falar. Sou anti-Couceirista assumido. Mas, hoje, dou os parabéns ao treinador. Acertou em pleno no esquema e transformou um 4-4-2 "Carvalhisto-Matraquilhisto-Aberrante" numa equipa de futebol com princípio, meio e fim.
Dou nota 4 (de 0 a 5), apenas porque a substituição de Januário me pareceu errada. Mesmo em défice físico, tinha-o mantido no meio campo, porque os seus reflexos ainda são bem superiores aos de Romeu e fizeram-nos falta. Ainda assim, entendo a substituição nesta óptica: manter os extremos em ambas as alas, não “uniflaqueando” a equipa, princípio de que sou adepto.
Enfim, espero que hoje seja o começo da minha mudança de opinião.

Romeu: Meu caro, é agora ou nunca!