É o meu último post, são as minhas últimas palavras sobre o Belenenses.
São palavras de uma lucidez terrível, daquelas que só nos dá quando se atingem os extremos da aflição, os extremos da derrocada, o fim da linha. Passei, nos últimos dez minutos da jornada 34 da época 2005-06 por uma experiência de vida traumática indescritível. Vê-la-ei, senti-la-ei, seguramente, no dia em que abandonar este mundo.
São palavras de uma lucidez terrível, daquelas que só nos dá quando se atingem os extremos da aflição, os extremos da derrocada, o fim da linha. Passei, nos últimos dez minutos da jornada 34 da época 2005-06 por uma experiência de vida traumática indescritível. Vê-la-ei, senti-la-ei, seguramente, no dia em que abandonar este mundo.
Essa lucidez porém teve uma virtude: fez-me ter, em dez minutos, a síntese de tudo aquilo sobre o qual escrevi, a essência de todas as ideias que tentei expor, mas que nunca consegui perceber racionalmente: O BELENENSES JÁ ESTAVA MORTO.
Esta descida não é mais do que o trasladar de um cadáver. Um cadáver que sai de um panteão para uma vala comum.
O Belenenses já estava morto. Morreu na mais importante batalha da sua vida, que perdeu: a batalha pela sua própria sobrevivência dentro de si próprio.
Dentro do Belenenses, o Belenenses já estava morto, já não existia.
Tolos, parvos, ingénuos, alguns julgámos que não.
Só mesmo o desesperado agarrar a uma crença nos fazia pensar que não era assim e nos permitiu não ver o cheiro apodrecido do já cadáver: os emprestados, a tolerância aos emprestados, até a apologia dos emprestados, os convidados, os festejos dos convidados na nossa bancada, os treinadores que diminuem e insultam os adeptos, as AGs onde, a uma semana da descida, há sócios que discutem as pessoas que não levam chinelos para a piscina, os presidentes que respondem a esses sócios, os presidentes da mesa da AG que não vão aos jogos, o presidente que se ri quando dizem que o seu clube dava um excelente entreposto, os jogadores que riem dos adeptos, os secretários técnicos que se estão marimbando para o clube, o treinador que, se fosse preciso, até lhe cuspia em cima, a bebedeirinha eclética do meio milhão/ano para os “Conquistadores” e outro tanto para os “Guerreiros”, a malta dos blogs a vibrar com os cestos do Moore enquanto a equipa de futebol matava de vergonha, de nojo, de repulsa, de traição os seus verdadeiros, mas enganados, adeptos, a malta de cada secção a dizer “isto vai bem é quando o futebol está na segunda”.
Tudo moscas à volta de um cadáver. O seu a seu dono - o cadáver é vosso. Naquela batalha em que morreu o Belenenses, vocês ganharam. Os despojos de guerra são dos vencedores.
Apesar do que estou a dizer, não guardo rancores a ninguém.
Limito-me a reconhecer a realidade.
A minha dimensão humana sobrepõe-se à minha dimensão clubística (se calhar, um dos únicos factores positivos da parte de ser Belenenses de que não gosto).
Não vou, por isso, esperar qualquer jogador ou dirigente. Aplico àqueles que maltraram o meu sagrado clube, o "perdoai-lhes Senhor, que eles não souberam o que fizeram". Que a vossa consciência seja branda para convosco.
Nem vou verberar Cabral Ferreira.
Toda a gente sabe o que acho de Cabral Ferreira. Já lhe chamei tudo. Para mim, Cabral Ferreira, não sendo o único culpado, é a personificação daquilo que matou o Belenenses e que eu julgava que ainda se podia combater.
Porém nesta hora queria fazer uma coisa que julgava impensável: enviar-lhe um abraço.
Não por solidariedade Belenenses, porque acho que isso são valores em que não nos tocamos.
Queria fazê-lo por pura solidariedade humana. Sincera.
Armando Cabral Ferreira, sei que por vezes lê os blogs e os meus textos. Sei que sofre. Permito-me a presunção de imaginar o que sofre, de imaginar o que deve ser para si suportar as lágrimas de uma nação, ver o seu nome colado para sempre à memória de um pai que olha para um filho no momento em se revêem no seu olhar de desespero, mas de comunhão, por um clube que acabou de descer. Foi esse olhar que tive para o meu pai em 82 e nunca mais me saiu da cabeça. Sei o quanto de falhanço pessoal isto terá para si a forma como o marcará. Sei disso tudo. E sei que você também sabe.
Você errou profundissimanente. Errou indesculpavelmente. Você FOI o erro.
Mas o erro tem na nossa consciência um lugar onde se acaba por redimir. Na sua, isso acontecerá certamente.
Sabe, Cabral Ferreira, você é talvez o único a quem eu não guardo verdadeiro rancor. E isso dá-se pela razão extraodinária de que você é a personificação desse mal. Por ser a personificação, por ser aquele que dá o nome, aquele que responde, aquele que encarna a doença que matou o Belém, e aquele que agora se confronta com o peso pessoal do erro, você ganhou a minha compaixão. E ganhou em mim alguém que deseja ao homem Cabral Ferreira que olhe para a sua vida de uma maneira digna e humana, deixando que esta marca lhe seja uma dádiva carregar, como parte de uma condição que é comum a todos nós - a condição humana.
Somos todos homens de carne e osso, todos temos sentimentos, você terá os seus.
Por isso, fique já com pelo menos uma absolvição, a minha. Repito: é sincera.
Quanto aos homicídas sem rosto (e agora legítimos herdeiros do que resta do cadáver), também não lhes guardo verdadeiro rancor. Antes desprezo. Limitar-me-ei a varrê-los da minha memória.
Pergunto-vos apenas, por mera curiosidade retórica, porquê?
Que mal o Belenenses vos fez?
Quanto ao futuro, não consigo desejar, em sinceridade, que façam do cadáver Belenenses um motivo de felicidade para vós e para as vossas famílias, amigos, o que quiserem. Não ficarei a assistir a esse espectáculo degradante.
Mas, não mais vos maçarei.
Espero, do fundo do meu coração, que ninguém se constipe na piscina, que o Moore ou outro americano qualquer possa continuar a encestar no Acácio Rosa para gáudio eclético da sociedade civil de Lisboa, que o Laurentino possa dizer que há em Portugal, finalmente, um entreposto clubístico entre as multinacionais, que os vossos acompanhantes benfiquistas e sportinguistas possam voltar ao Restelo, nem que seja para jogos particulares, sem terem de olhar por cima do ombro de encontro a esgares de perturbação como o meu, que escrevam muitos textos “lúcidos” na blogosfera, que distribuam muitos abraços, jantares, dias do adepto e que nunca admitam que alguém procure falar em Belenenses de primeira e de segunda, e que voltem a chamar livremente a uma coisa chamada de Couceiro "alguém que se identifica com os valores do clube".
Não vale a pena continuarmos a enganar-nos.
Tenho que aceitar as coisas como elas são. Isto que ficou no lugar do Belenenses pertence a quem de direito.
Pertence-vos.
Admito a minha derrota.
À “blogosfera azul” em geral (com excepção daqueles que sabem quem são) queria dizer algumas palavras: a linha de fronteira entre o exercício da liberdade de expressão e de pensamento e a sabujice é muita curta. Sou daqueles que acha que qualquer pessoa tem o dever intelectual mínimo de puxar um bocadinho pela cabeça. A maior parte de vós não o cumpre. O Belenenses não o merecia.
Àqueles que sabem quem são, queria dizer o seguinte: a minha luta fica por aqui. Aconteça o que acontecer.
Boa sorte aos que, por razões que só eles saberão, decidirem continuar a lutar. Fazem mal, mas, como disse Nietzche, tudo quanto se faz por amor, faz-se para além do bem e do mal.
Àqueles que estão agora na idade em que eu estava quando desci pela primeira vez, deixo o meu testemunho de que valeu a pena. Para eles, o futuro será pior. Desejo-lhes sorte na caminhada.
Quanto a mim, abandono-vos. Permitam-me o egoísmo e a imperfeição máximas, talvez até, a cobardia, que expresso de um modo muito simples: estou intoxicado pelos vapores que emanam deste cadáver e já não suporto as moscas que o comem até ao osso. Não vou deixar que isto me arraste para a cova. Guardarei a imagem sagrada. Defende-la-ei como uma parte que fica em mim.
Para salvar a minha fé, parto para o exílio até ao resto da minha vida.
Sempre me interroguei porque é que aqueles que eu via sofrer por este clube há anos que andavam dele desligados, há anos que não entravam no Restelo ou sequer queriam saber.
Tolo, burro, não os percebia.
Hoje, como é óbvio, estou defronte da verdade que não quis ver.
Junto-me a eles.
O Belenenses deixa-me clubisticamente viúvo. Sê-lo-ei até morrer. Fico com essa herança: a honra de não pertencer a mais nenhum e a alegria sem preço de ter visto com vida, de ter sentido, de ter celebrado e de ter sofrido pelo melhor clube do mundo.
De ter tido o previlégio se sofrer, como hoje muitos de nós sofremos em diversos pontos do mundo. Desses, queria enviar um abraço muito especial aos 400 que, na bancada desse estádio maldito, se abraçaram e choraram. Neles, o cadáver tornou-se por inenarráveis instante de dor, numa coisa de carnes e ossos, de paixão e de lágrimas. Não consigo expressar o orgulho que sinto neles.
Só é grande em nós aquilo pelo qual já chorámos.
Até à eternidade Belém!
P.S. Aos microfones da antena 1, anunciou-se que o golo do Gil Vicente foi o golo 666 deste campeonato.