segunda-feira, 5 de setembro de 2005

A Procissão

O dia de S. Bartolomeu, que se comemora a 29 de Agosto, é um dia que se festeja no nosso país, numa mistura de fé religiosa e paganismo que tão bem se coaduna com a alma de um povo de sangues misturados. O que é que isto tem a ver com o Belenenses, perguntará o leitor menos disposto a aturar “chouriços” de quem, aparentemente, não tem assunto sobre o qual escrever. Em princípio nada, mas, desde que haja vontade, arranja-se sempre uma maneira de forçar as situações.

Como para a maior parte dos portugueses, que cometem a “originalidade” de fazer férias no mês de Agosto, o dia de S. Bartolomeu praticamente me anuncia o fim do período em que consigo fazer ainda menos do que durante o resto do ano. De há uns anos a esta parte tenho o hábito de passar este dia na pacatez (?) do litoral alentejano, mais precisamente em Porto Covo. Ora aqui estão dois elementos que têm já alguma coisa a ver com o Belenenses, Porto Covo e eu prório, mas há mais, como tentarei demonstrar a seguir.

Em Porto Covo, como em muitas outras terras da beira mar, este dia é festejado no tal misto de religião e paganismo, com apanhas de patos por nadadores de ocasião, feiras de “utilidades” perfeitamente dispensáveis e espectáculos musicais (?) de qualidade muito discutível. A sequência de eventos festivos culmina na noite do dia 29 com a procissão solene em honra da padroeira da terrinha, que percorre as ruas da localidade. Ou melhor, que percorre algumas ruas da localidade.


Este pormenor de a procissão não percorrer todas as ruas da terra, aparentemente sem qualquer importância, reveste-se contudo da maior gravidade, pois constitui (ou constituía) problema intransponível para a senhora minha mãe, esta sim, pessoa de inegável relação com o Belenenses. Mas a razão não é, obviamente, essa.

Em quase todas as terras do nosso país, manda a tradição cristã da maioria dos portugueses que se coloquem colchas nas janelas das casas nas ruas por onde passa uma procissão. A nossa casa de Porto Covo fica numa rua que vai dar às praias, um pouco afastada do centro (e da confusão) da “urbe”, para meu contentamento. Contudo, o que para mim é uma vantagem, é motivo de tristeza para a minha mãe, uma vez que a “marginalidade” da nossa rua a priva de ser contemplada com a passagem da procissão, ficando assim a pobre senhora impedida de, com as suas colchas, homenagear o solene cortejo.

Este ano, contudo, o problema ficou resolvido, ou pelo menos atenuado. Não, a procissão continua a não passar à nossa porta, mas uns primos meus decidiram comprar casa em Porto Covo e, para felicidade da tia (e azar deles), na rua principal, onde, obviamente, passa a procissão!
Assim que soube que os sobrinhos tinham casa naquela rua, a minha mãe declarou que este ano é que ia pôr as colchas à janela (da casa deles, claro). E assim foi! Ao fim da tarde do dia de S. Bartolomeu lá fomos nós de armas e bagagens, ou seja, com os sacos das colchas, para a Rua Vasco da Gama. Uma hora antes da passagem do cortejo já estavam as janelas da casa dos meus primos devidamente engalanadas. Ou quase...
Tradição é tradição e as coisas ou são bem feitas ou não vale a pena fazer nada. Sem desprimor para as colchas, eu e os meus primos achámos que a decoração não estava a preceito, faltava qualquer coisa, algo que marcasse indelevelmente a solenidade do momento. Com que poderíamos então dar um toque de génio à festividade das janelas? Com o emblema do Belenenses, claro! Tínhamos os nossos cachecois! Com o meu e os dos meus primos, foram três os cachecois que colocámos religiosamente, em todo o seu esplendor, sobre as colchas da minha mãe.


O impacto sobre os muitos transeuntes, que começavam a acumular-se na rua, não se fez esperar. Mais uma vez sem desprimor para as colchas (e para a ideia da minha mãe), ainda que no Alentejo esta tradição seja menos forte do que em Lisboa ou em terras do norte do país, a atenção e o destaque da noite foram para os cachecois do Belenenses. Poucas foram as pessoas que passaram e não pararam, apontando e comentando, diante das galhardas janelas que ostentavam a Cruz de Cristo. Houve mesmo um casal de meia idade a quem apanhei o seguinte comentário. Dizia a senhora:
- Aquilo é o Belenenses? Não pode ser...
Ao que o cavalheiro respondia:
- Claro que é o Belenenses, se não fosse o Belenenses, querias que fosse o quê?


Quando, finalmente, a procissão subiu a rua, a emoção não foi menor. Algumas beatas quase se queimaram na velinha que traziam na mão ao olharem de boca aberta para os cachecois nas janelas. O próprio padre, embora tentando manter a gravidade que o momento lhe exigia, não conseguiu evitar um sorriso complacente. Só a Santa, no alto do seu andor, ainda que vestida de azul, conseguiu manter a sua compostura, certamente por ser de pau. Mas, estou convicto, de que não se esquecerá de derramar a sua bênção benfazeja sobre o nosso Clube, quiçá bem mais eficaz do que o romantismo de Carvalhal...


Seja como for, o Belenenses foi o rei da festa por uma noite. Numa segunda feira, sem jogo nem qualquer outro acontecimento de relevância clubística, a palavra “Belenenses” foi pronunciada por centenas de pessoas que não estariam certamente à espera de a incluir no vocabulário a utilizar nessa noite.


Podemos agradecer o “milagre” a S. Bartolomeu e à Nossa Senhora da Soledade, padroeira de Porto Covo. E poderemos agradecer a nós próprios um outro “milagre”, se um dia conseguirmos que o Belenenses seja rei de uma outra festa e durante muitos dias e noites...

Saudações azuis.