quarta-feira, 28 de setembro de 2005

Singing the Blues (I)

(sobre as letras das músicas do nosso Belém)

Embora alguns possam não concordar, penso que o nosso Clube vive presentemente uma época decisiva da sua história, lutando, a cada minuto que passa, pela sua própria identidade, por se perceber e definir a si próprio.
Somos imortais, mas não somos imutáveis. É natural que busquemos essa definição por várias formas.

Sendo uma coisa colectiva, ou seja, uma coisa de muitos, feita por muitos ao longo de muito tempo, penso ser importante perceber como é que essa colectividade se foi vendo a si própria.
Ora, as colectividades têm tendência para se exprimir e para se afirmar, entre outras coisas …. cantando.
O canto, o cântico, o hino, são formas puras de manifestação colectiva.
Daí a importância desta fonte.

Uma das coisas que fiz nos últimos tempos foi gravar para CD todos os hinos do Belém disponíveis no site oficial do Clube. Agora, oiço-os regularmente no carro, em especial nas idas e nos regressos dos jogos ou, simplesmente, quando penso no Belém.

Ouvidas com atenção, as letras das nossas músicas mostram coisas muito interessantes.
Permitir-me-ei dissertar um pouco sobre elas, de forma despreocupada.
Trata-se só da minha audição pessoal.

Nesta análise, fica de fora o Hino Oficial e o “Belém das Caravelas” do Pedro Barroso, que passam abundantemente no Restelo e que estão suficientemente frescos na memória de quem milita, não justificando o tipo de análise que proponho.
Ficam, também, de fora, os mais recentes pedaços de cultura de canto na Nação Pastel, que são aqueles que saiem da bancada, pela voz da Fúria Azul.

Dedicar-me-ei aos hinos que estão na “prateleira”.
Desses, excluo mais um – “O Fado do Belenenses” – por razões que estão alcance de quem o quiser ouvir. Eu não quero. Não suporto aquela choradeira sem nexo.

Quanto aos quatro que me proponho tratar, a experiência de os ouvir é fantástica.
Muita da nossa memória como Clube, muitos dos nossos traumas e ansiedades, estão ali subliminarmente retratados. A nossa evolução ao longo dos tempos também
As letras destas músicas permitem, com alguma atenção e conhecimento mínimo da causa belenense, perceber como evoluiu a nossa mentalidade colectiva. A trajectória foi a inversa daquela que desejaríamos. Todos o sabemos. Ao destemido Belém que queria ser campeão nacional “de vitória em vitória”, sucedeu um Belém a mendigar que “não há diferença, afinal, entre os clubes Lisbonenses”. Talvez por esta trajectória ser o que é, a mais nova das nossas músicas – O Belém das Caravelas, do Barroso - já se refugia em exortações de saudade, em Caravelas míticas e quejandos (É agora a vez do SPM do Blog Belém Integral ficar baralhado com os meus gostos).

Não fiz qualquer investigação história sobre os hinos – quem escreveu, quem cantou, quem produziu, etc. Não faço a mínima ideia.
Limitei-me a ouvi-los.
Esta análise é puramente sentimental.
E menos interessante daquela íntima que cada Pastel deve fazer ao ouvi-los.
Mais do que ler este post, é isso que recomendo. Oiçam-nas e tirem partido do(s) Belém(ns) que elas vos oferecem.

Em suma, proponho-me uma viagem pela letra de quatro músicas da nossas, por esta ordem:
I) Eu sou, tu és, ele é, nós somos belenenses
II) Vamos Belém
III) Ser Belenenses
IV) Das Salésias ao Restelo

Não sei se foi esta a ordem cronológica da sua elaboração.
No site, o alinhamento não é exactamente este. O “Vamos Belém” antecede o “Eu sou, Tu és …”
Porém, alinhei-os assim porque faz mais sentido. No decurso das análises ver-se-á porquê.
Como isto gerou um texto longo, para não maçar o leitor, vou dividi-lo em quatro fascículos.
Hoje, além desta introdução, que já vai longa, sai o primeiro deles.
Aqui vai:

I) Eu sou, tu és, ele é, nós somos belenenses
(a música de um clube que só pensava em ganhar tudo e mais alguma coisa)

Esta música, de curta duração – cerca de minuto e meio - começa com uns acordes já ronfenhos e não inteiramente conseguidos.
Devo dizer, aliás, que como proeza musical se trata de uma conquista relativa.
Os acordes passam depressa e surge uma voz masculina, apressada para encaixar num tom musical difícil, a conjugar de uma forma monocórdica e pouco melódica o verbo “ser belenenses”, a qual conjugação dá nome ao hino:

Eu sou belenenses, ...
Tu és belenenses, ...
Ele é belenenses, ...
Nós somos Belém, ...


Este início, nada prometedor e que me levou a saltar várias vezes esta música até lhe dar a devida atenção, é reparado, suplantado e ultrapassado pelo empolgamento dos versos seguintes:

Por ele lutaremos, ...
Campeões seremos, ...
E até ganharemos, ...
A taça também

A dobradinha!
Nem mais, nem menos!
Ou seja, os nossos consócios que encomendaram este hino não achavam que o seu Clube deveria lutar para o décimo lugar, para dois acima do décimo, para um lugar Europeu (com expressa ressalva de que para a Champions, não), ou para ... ora bem ... lutamos para .... com licença ... ora ... desculpe lá, deixe-me consultar o futebolês correcto ... ora ..... “sermos cada vez mais fortes” (Uff, que alívio).
Não.
Para os nossos consócios donos de obra deste hino, não havia uma dialéctica de orçamentos altos vs orçamentos baixos. Eles queriam lá saber disso!
Esses nossos consócios AFIRMAVAM (não era uma questão de definição de objectivos, mas de afirmação) que ... seríamos campeões e ganharíamos a taça.
Por isso, escolhi este hino para iniciar estes fascículos.
Aqui não havia meias tintas ou meias medidas.
Daí o drama desta evolução.
Que é feito desse Belém?
Não admira que este hino não saia da prateleira da nossa memória colectiva!

Ora, se aqueles versos já empolgavam, agora com um ritmo muito mais entusiasmante e musicalmente melhor conseguido, surge mais esta pérola:

Ao jogar vais cobrir-te de glória ...
Vais lutar, ...
Vais correr, ...
Sem rival ...

Serás de vitória em vitória ...
Campeão de Portugal

Estes versos são repetidos por duas vezes, na segunda por um coro de vozes, também femininas.
A música consiste na repetição por duas vezes estes três versos.
Esta última parte é das mais empolgantes de todos os hinos.
Este Belém não queria só ganhar tudo.
Queria ganhá-lo e saboreá-lo.
Queria ganhar jogo a jogo, de vitória em vitória.
Queria celebrá-las como conquistas individuais que, somadas, levavam à Glória final.
Mais uma vez, as diferenças para o presente são dramáticas.
Pelas alturas desta música, o Belém não entrava em campo para ver (e ficar imensamente satisfeito só com isso) se dele saía “inteiro”.
Não.
Entrava para ganhar.
Para somar vitórias atrás de vitórias.
Este Belém achava-se “sem rival” e afirmava-se vitorioso por natureza.

No fundo ele exprime o mais básico e natural dos instintos de uma colectividade desportiva: Ganhar.

Parece que já nos esquecemos.
Para a semana vem o próximo.

Um abraço musical

CPA
(este texto é dedicado aos quatrocentos que entraram a cantar o nome do seu clube nas Antas no último Sábado à noite)