Para muitos belenenses novinhos, a relação com o seu clube começa num deslumbramento encantado, cheio de optimismo e ingenuidade, convictos de que muitas alegrias e vitórias surgirão, naturalmente, como todos os dias amanhece ou anoitece; de que uma vitória é apenas mais uma das muitas que hão-de vir; de que uma derrota ou uma classificação é somente uma nuvem passageira; de que o seu clube é forte e respeitado; de que tem meios, ambições e possibilidades semelhantes às dos outros, dos quais se fala tanto.
Mas, a pouco e pouco, vem a mágoa e a ansiedade: os outros miúdos, quase todos de clubes mais bem sucedidos, que gozam com a nossa ausência de triunfos, o estádio, sempre lindo mas desoladoramente vazio (“então não há muitos belenenses, como nós?”), as vitórias que teimam em não aparecer, as derrotas que nos esbofeteiam duramente, as notícias que quase sempre nos ignoram e quase sempre falam de “outros”.
Depois, já na fase final da adolescência, vêm outras constatações, mais racionalizadas mas nem por isso menos dolorosas: temos realmente um déficit de meios para lutar de igual para igual com os mais poderosos; todos os anos se fala em mudar mas as coisas continuam na mesma e, muitas vezes, mudam para pior; vemos que o Belenenses é subalternizado, que não é respeitado como devia, que nos vêem de maneiras bem diferentes daquelas com que olhamos e sentimos o nosso clube. Começamos a perceber que não é por acaso que, na imprensa, nas poucas vezes em que falam no nosso Belém, o fazem a correr, sem conhecimento nem consideração, escolhendo a dedo os nossos jogadores que entrevistam para poderem perguntar sobre outros clubes – o Benfica, e o Sporting e mais o Porto. Com jogadores emprestados, então, chamam-lhe um figo, pois a relação é directa. Mas ainda quando assim não é, descobrem sempre que aquele jogador, nem que seja há 15 anos atrás, jogou num desses clubes ou que, há quatro épocas atrás, se falou uma vez em ele se transferir para um dos tais.
E pior, começamos a reparar que, até no nosso estádio, com esses mesmos clubes, tantas vezes “jogamos fora”, esmagados por um peso de adeptos e por claques mais numerosas, a que só podemos resistir como é possível. Vemos, no nosso próprio estádio, apesar da correcção que caracteriza a maior parte dos sócios e simpatizantes do Belenenses, que massas adeptas de outro clube insultam, agridem, partem, destróem e conspurcam, perante a nossa impotência e às vezes a passividade das forças policiais. (Não sei se alguém aqui já assistiu a um jogo no Restelo, contra um dos clubes com mais adeptos, rodeado por estes. Eu já, uma vez. Foi em 78/79, contra o Benfica. Felizmente, ganhámos por 1-0. Por razões que não vêm ao caso, assisti na Superior Norte, que tinha uns 80 ou 90% de "lampiões". É inenarrável! Que fanatismo cego, que propensão à violência e intimidação, que falta de princípios e educação mínimos, que arrogância parva e bestializante! O clima entre eles próprios é tal, que assisti à maior cena de pancadaria que vi na vida. Depois, à saída, deixavam todas as torneiras abertas (fui ameaçado por ir fechar algumas), davam pontapés no que podiam, como autênticos bichos. A sua ignorância sobre o Belém era total. O árbitro anulou-nos, muito mal (como se confirmou na TV), um golo, por pretenso fora de jogo. Pensando, não sei porquê, que ele tinha mandado marcar penalty contra eles, aprestavam-se a invadir o campo. Depois de verem que, afinal, tinha sido anulado o golo ao Belenenses e marcado fora de jogo, continuaram imperturbavelmente a chamar “gatuno” ao árbitro... etc, etc. Não é que os belenenses sejam o pináculo da perfeição humana, ou que não existam pessoas de bem em todos os clubes, mas, em especial contra as claques, não dá para comparar. É a diferença entre seres humanos e feras bestiais!).
E vemos que até isso (prepotências, actos que denotam o mais bárbaro desrespeito por tudo e todos) é passado em claro pela comunicação social que, como com tantos outros poderes, são servas desses outros clubes. E olhamos à volta, e vemos que outros clubes, além desses 3, têm suportes, apoios e pressões regionais, camarárias, políticas e económicas, e que apenas nós parecemos estar sós na nossa luta, desamparados e, de certa forma, vulneráveis.
E vemos que é preciso ter um grande poder de encaixe, uma grande capacidade de resistir e persistir, de aguentar a adversidade e a míngua de vitórias. A maior parte dos que nos rodeiam, são dos clubes de que é fácil ser: Porto, Benfica, Sporting... Outros, naturalmente, regra geral em acumulação com um desses clubes, apoiam o clube da sua terra. E nós, por que somos do Belenenses? Sabemos, mesmo quando não somos capazes de nos explicar; mas ninguém nos parece entender...
Talvez não seja bem assim para quem mora em Belém, Ajuda ou zonas adjacentes, mas todos os que moramos mais longe, já muitas vezes fomos chocados com a pergunta: “És do Benfica ou do Sporting”? (Não sei, sinceramente, como será, por exemplo, no Porto. Outros poderão explicar com conhecimento de causa). Eu sempre me enfurecia em miúdo. Antes de dizer que era do Belenenses, respondia ferozmente: “Porquê? Só há esses clubes?”. No passado, olhavam-nos com espanto, às vezes com frases de desafio provocante. Nos nossos dias, é pior: podem perfeitamente dizer-nos “pois, está bem, nós somos todos do Belenenses ou da Académica mas diga lá qual é o seu clube a sério, ou quer esconder para não se comprometer”.
Hoje, porém, eu olho o ser do Belenenses como uma enorme superioridade. Além do mais humaniza-nos. O Belenenses é e foi simultaneamente grande e fraco, vencedor e vencido. E isso ajuda-nos a saber estar em diferentes circunstâncias, a saber estar com os ganhadores ou os vencidos na terrível competição que costuma ser a existência humana; ajuda-nos a respeitar os que perdem e a não nos rebaixarmos perante os que ganham. Mas, para uma criança, sobretudo quanto não mora perto de Belém, pode ser difícil lidar com os “enxovalhos”.
Talvez por tudo isto, vamos aprendendo a defender-nos. Uns, refinando um saudável sentido de humor; outros, tornando-se optimistas incorrigíveis, sempre a dizer que “acreditam mais do que nunca”; outros tornam-se “marretas” militantes, sempre prontos a repetir como Camões “Vi ao bem suceder mal e ao mal muito pior”; outros, fartam-se por uns tempos, como forma de escape; outros (que me custam mais a entender), tornam-se uma espécie híbrida, semi-Belenenses semi-outro clube qualquer, que quando quer dar exemplos de alguma coisa, desconhece os factos e a história do nosso clube, e ilustra com o Benfica, o Barcelona ou o Milão.
De uma forma ou doutra, temos que arranjar as nossas carapaças. Mas “as crianças, Senhor?”. Essas, não as deixemos enxovalhar; não as deixemos esbofetear; não as deixemos entristecer. Não esqueçamos como o Belenenses foi grande, não desistamos de querer um Belenenses grande, não permitamos que elas desesperem de ter (algumas) vitórias e alegrias!